Querido diário, ou talvez… querida eu,
Hoje eu escrevo não mais como a menina que sofreu calada, mas como a mulher que ainda sente o eco da dor.
Eu sou aquela criança que cresceu no silêncio, no sufoco, na ausência de colo. Que gritou por socorro em olhares, em gestos, em febres que ninguém entendeu.
Mas ninguém me ouviu. Ninguém me acreditou.
Eu tinha seis anos quando o mundo parou de ser seguro.
Meu tio — o irmão da minha mãe — entrava no meu quarto quando todos dormiam. Me calava com medo, com ameaças, com aquele poder invisível que só quem já foi criança assustada conhece.
Eu tentei contar. Uma, duas vezes. Mas minha mãe dizia que eu tinha imaginação fértil. Que ele nunca faria isso. Que eu devia parar de inventar coisas.
Dói mais do que o abuso em si: não ser acreditada.
Ser desacreditada por quem deveria ser o seu abrigo.
O tempo passou. Ele foi embora, para uma cidade a mais de 3.000 quilômetros. Respirei alívio por alguns meses.
Mas aí minha mãe, cansada, sobrecarregada e talvez sem escolha, decidiu que eu devia ir também. Que era melhor para mim ficar com a avó — onde ele morava.
E tudo recomeçou.
A infância que me roubaram
Enquanto as outras crianças brincavam, eu lavava roupa.
Enquanto meninas sonhavam com o futuro, eu temia as noites.
Aos 14, conheci um menino da minha idade. Foi meu refúgio. Meu porto. Ele não sabia, mas me salvou sem saber.
Me agarrei a ele como quem vê uma luz no fim do túnel.
Minha família via aquilo como uma oportunidade: um homem para me ajudar, alguém para dividir a responsabilidade de me sustentar.
Mas eu era só uma menina.
Com 14 anos, já era “mulher de alguém”. Não porque eu queria, mas porque disseram que era o certo.
Com 15, já era mãe de dois.
E mesmo assim, continuava sendo filha, irmã, esposa e dona de casa.
A escrava silenciosa da rotina, das panelas, das brigas, das humilhações.
A mulher invisível que eu virei
Meu marido, ora bebia, ora ameaçava.
Me dizia, com palavras cortantes, que eu não servia pra nada.
Ameaçava meus filhos, fazia pressão.
Eu, menina-mãe, segurava o mundo nos braços.
Tinha os irmãos pequenos para cuidar, a casa para manter, e meus próprios filhos com fome e febre.
Trabalhar fora? Nem pensar.
Estudar? Isso era luxo.
Aos 16 anos, eu já tinha perdido os sonhos.
Só queria um colchão limpo, uma panela cheia e um pouco de paz.
Minha mãe, que sempre correu para dar conta da vida sozinha, adoeceu. E partiu.
Partiu sem saber das noites que passei acordada, das dores que engoli.
Partiu me deixando com mais peso — porque agora, era só eu.
E eu era só uma menina.
A mulher que ainda mora em mim
Hoje eu escrevo com mãos calejadas.
Com o corpo que envelheceu antes da hora.
Com os olhos que viram demais, que choraram calado, que sonharam acordados.
E mesmo depois de tudo, eu continuo aqui.
Eu resisti.
Eu ainda estou aprendendo a me libertar.
Ainda acordo às vezes assustada, me perguntando como cheguei até aqui.
A criança que eu fui ainda mora em mim — e hoje eu escuto ela.
Eu a abraço. Digo que ela foi forte demais.
Ela não era irresponsável. Ela era só uma criança.
E hoje eu grito: cuidem das nossas meninas!
O que eu vivi não pode ser normalizado.
O abuso, o casamento infantil disfarçado de oportunidade, o abandono emocional, a falta de voz.
Quantas outras meninas vivem isso agora, em silêncio?
Cuidar das crianças não é só dar comida ou uma escola.
É olhar nos olhos. É acreditar quando elas dizem que algo está errado.
É ensinar que amor não é controle, que carinho não é invasão, que respeito começa dentro de casa.
Nós, adultos, temos a obrigação de fazer diferente.
A dor que vem de fora machuca, mas a que vem de casa… destrói.
Destrói autoestima, fé, esperança.
A reconstrução é lenta, mas possível.
Hoje eu sei disso.
Mesmo sem diploma, mesmo sem infância, mesmo com cicatrizes…
Eu sou forte.
E vou seguir.
Porque agora, eu cuido.
Cuido dos meus filhos com tudo que eu não tive.
Cuido dos meus irmãos, agora crescidos, com o coração leve de quem perdoa, mas não esquece.
Cuido da minha menina interior, que sobreviveu quando tudo dizia que ela não ia aguentar.
E cuido das palavras, porque agora, eu conto.
Porque toda dor escondida que vira palavra liberta alguém.
Se você está lendo isso e passou por algo parecido — você não está sozinha.
Se você é mãe, tia, professora, vizinha — esteja atenta.
Seja escuta, seja abrigo, seja coragem.
Porque uma criança ouvida pode ser uma mulher inteira no futuro.
E a gente merece ser inteira.
Mesmo depois dos pedaços.
Com amor,